Fragmento Indignado
Eu quero meus
fragmentos lidos, relidos, ditos e não ditos em folhas de jornal de domingo.
Samba a dois, ponto sem nó.
Há muito de
impublicável. Pena, muita gente ia gostar do indizível. Outros, não. Ah,
algumas denúncias expostas incomodam mais que a ideia de morte, que a
resignação de ser deixado, de perder o outro. Dor de cotovelo é um clássico, e
não sou eu que vou enfiar o dedo na ferida alheia. E haja convenção social,
bons comportamentos, bons textos. Polidez, segredos do contido. Não pode
palavrão? Pornô? Ah, uma menina tão linda como você, não fica bem...
Que venha a
idoneidade hipócrita e cínica. Não é pra ser? Que, todos os dias, meu bom dia
seja uma máscara social. Com o tempo, bom tempo, aprendemos a ser tão bons
nisso, que cola, sem superbonder nem nada, à nossa cara.
Me empresta a
sua, por favor? A minha tá meio artificial. Não sei, talvez falte um pouco de
pó compacto. Ah, joga um pouco de blush, compra um sorriso na esquina! Custa um
pouco mais que um tablet última geração, notebook Windows 8, Nikkon
semiprofissional. Iphone 1,2,3,4,5. E, acredite, causa uma impressão maior,
muito melhor.
Porque vale o
que se mostra, se ostenta, e não o que se sente. Isso é velho, aprendi por aí.
Mas isso é muito feio, comunistas comem criancinhas!
É tudo tão
atual, tudo tão nocivo... as pessoas não enxergam?! Como isso é possível?! O
dinheiro está aí, está tudo aí, um pouco mais de trabalho e cansaço, por favor! Meu patrão precisa sobreviver, coitado. Meu alunos não podem pagar, muito cara
a sua hora-aula, eu preciso trabalhar é de graça! Professor não come, né? E doutoranda não compra livros, não faz pesquisa, não publica em congresso... Bolsa?! Só a da xepa da feira...
E a gente vive
de migalhas, de sonhos inauditos. Eu reprimo os meus, todos, porque praia todo
dia é coisa de burguês, hippie ou vagabundo. Chocolate, mocotó, xinxim,
dobradinha todo dia? Engorda! Cerveja? Dormir até tarde? Que preguiçosa!
Cachaceira! Miojo? Uma bomba de sódio! Exercícios! Corra, entre na esteira,
aperta o jeans Coca-cola, é preciso caber nas coisas. Olha que masturbação
adoece! Os espaços são imensos e inundados de hipocrisias lamentáveis, e eu
ando muito puta com tudo isso. Mas vou indo, a gente sempre aguenta mais um
pouco! O mito de “só vou botar a cabecinha” é tão escroto, mas é tão muito
certo!
E tudo tem
tanto a ver com grana... até amor. Vou ali, comprar o meu, novo, no shopping.
Vou aproveitar as promoções de natal, tem tantos, tão em conta... Espero que
possa acrescentar garantia adicional, um certo feminismo de liberdade, umas
tolerâncias alcoólicas nos fins de semana. Ah, deve ser meio cego, porque os
meus quilinhos sabotadores de ditadura da beleza não querem se sentir
constrangidos com um boy magia controlador e exigente do culto ao físico. Seria
bom que curtisse leituras, mas se ouvir comigo minhas músicas, será quase
perfeito. Ou, se ficar calado, melhor ainda. Já acabou?! Poxa, era um modelo tão
bom!.. Ah, então me vê esse de todo dia, cara de todos mesmo. Sei que não vai
durar muito, não sou dada a cárceres, mas, vamos lá, dançar a dança da
felicidade! Da hipocrisia...
Ando meio com
fome de liberdade. Será que engorda? Será que é tão feio assim?
E vamos à
impublicação, a não publicização dos sentimentos nossos e alheios. E os ditos e
não ditos, e os lidos e relidos, faço o quê com eles? Ah, vai enchendo a caixa,
as pastas, os lugares cheios de teias de aranha! Quando morrer, vira santo,
vira mártir, vira poeta do não entendido, do incompreendido pelo seu tempo. Aí,
todo mundo vai poder te ler.
E a mim também,
finalmente.
Foda.
Gilda Valente (início: 23/07/2010 –
continuação: 19/12/2012)
Gilda merece paz. Principalmente interior...
ResponderExcluirQuem sabe um dia?
ResponderExcluirMas... em paz, não se escreve! o penseiro dizia que não se escreve quando se está feliz. Os meus melhores textos vêm dos altos e baixos dessa minha grande guerra... E vamos rumo ao paradoxo terrível e delicioso da poesia. Vou ali, escrever mais um poquinho...
ExcluirMe diverti: "dor de cotovelo é um clássico"
ResponderExcluirMe identifiquei: "não pode palavrão? pornô? ah, uma menina tão linda como você, não fica bem [...] é preciso caber nas coisas..."
Compartilhei da revolta: "professor não come, né? [...] não compra livros, não faz pesquisa, não publica em congresso...
Sonhei sem querer, antes, morrer: "aí, todo mundo vai poder te ler. e a mim também, finalmente"
Morrer às vezes seria bom. Mas melhor viver, né?
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