ARMADILHAS

Eu fico passeando pela cozinha, indo da sala até o quarto. Não sem notar alguma coisa sua. Eu estou sempre faltando de ti.

Abro a geladeira. Tem aqui um siri congelado, vou escolher minha melhor cebola, algum tomatezinho bem cortado, pimentões. E alho, porque eu adoro quando está fritando, cheirando bom. Qualquer dia desses penso que poderia preparar para nós, eu sei, você vai ficar com preguiça de ir buscar a bebida, mas eu faço bico e tenho a maior gentileza do seu afeto, não sem um afago entre uma birra e outra.

Mainha me trouxe aqui um sofá velho, aquele, lá de casa. Está todo acanhado entre a minha mesa, meus lápis e minha brisa de janela, junto com essa lua de unha que, de quando em vez, me deixa saudosa e nostálgica. E virá, em domicílio, um senhor que vai arrumá-lo pra mim, deixar tudo novo em folha. E eu juro que até ouço o seu esparramar e a sua euforia quando dos nossos filmes, da minha novela juntos, dos seriados, e dos velhos novos beijos cheios de zoada e risos.

Na minha estante cheia de livros, há, nos derrames de cima, alguns dos quais foi você que deu, e eu não os consigo ler sem sentir uma pontinha de raiva e de remorso. Sorrio e me orgulho das lembranças do seu carinho, pois que fui eu que os escolhi, mas foi todo o seu desejo de me agradar, mimar a mim.

Eu enjoei de chocolate com leite há tempos, e não sou muito chegada a pão, nem presunto, mas tem tudo aqui, até as rosquinhas, que ofereço às visitas, desejando que elas acabem logo então, porque são suas, e ficarão velhas, para ninguém.

Esse ventilador também me faz espirrar, aí eu viro ele de lado um pouco, do jeito que você gosta, e me espalho na cama, abraço os meus trezentos travesseiros, mas eles não suam, como podem me esquentar? Vou dormir de ponta-cabeça hoje, mesmo com a claridade dessa janela cretina na minha cara, só pra dormir, por ora, contigo. Cadê?

Tem um saco com uma coisa só sua, até dá em mim, mas aí também já é demais ficar te vestindo, só pra te sentir de novo. Não há saúde nisso, então, here we go!

Eu não agradeço nada, eu sinto raiva, mas agora é menor. Eu sei, caberia mais um instante de despedida, de só mais uma vez, só por esta tarde, e eu sei que daqui a pouco você chega do trabalho, tem merluza com alcaparras, purê de batatas e arroz no fogo. Semana passada fiz aquele estrogonofe de novo, ficou o ouro, e eu me lembrei que não comprei batata palha, nem queijo ralado, e tem aqui essa porcaria de catchup que eu odeio, mas você gosta, vai ficar ruim sem uso. O refogadinho de frango e milho verde com repolho ficou bom também, você ia se esbaldar! Minha comida ainda é onde mais sinto a sua presença. Gosto muito de lembrar das nossas farras, mas a minha fome nem é mais a mesma, nem os meus chás noturnos.

Essa escova de dente e essa toalha ficam me olhando toda vez, e isso não é justo, porque elas me perguntam coisas sobre as quais eu não tenho resposta. Vou dizê-las: quem sabe um dia? Mas não, não hoje.

Olho no varal pra ver se guardei tudo seu, mas isso foi ontem. Quem vai me tirar esses pregadores, e esse cheiro de cuidado e amor? Deus, talvez. Ou ninguém.

E eu fico aqui me perguntando: será que esses mundos estão só aqui, o não dói ainda só em mim, esse não dormir é só e todo meu, ou foi tudo uma grande mentira? Não valeu, então.

Que saudade da porra.

Você é a minha pior ressaca.



Gilda.

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