O SONHO, O AMOR
Hoje eu te vi num
sonho.
Não foi nada comum. Foi
um sonho do passado. Eu estava no seu passado, mas eu era dos tempos de hoje. E
eu sabia. Mas, por algum motivo, por alguma graça, me foi concedido voltar. E
te ver.
Eram outros séculos.
Outra casa, outra vida, outras pessoas. Que tempo era aquele? Em algum momento,
pensei ser o século XVII ou XVIII, porque me vi com vontade de vestir aqueles
vestidos pomposos, cheios de espartilhos e meias. Eu me preocupava com isso,
porque ninguém podia desconfiar do meu tempo. Queria estar inserida, pra que,
principalmente você, não percebesse que havia algo errado. Mas você ainda não
tinha surgido.
Me vi numa casa grande,
antiga, colonial. Era uma casa boa, tinha muitos cômodos, muitos vãos, criados.
Não era a Bahia, era o Rio de Janeiro. Você morava nessa casa, com seus pais.
Havia muitos amigos que frequentavam esse ambiente. E era também perto da
praia, como se fosse o centro da cidade. Tudo muito antigo, um Rio que eu não
conhecia. Tudo era muito diferente do que é hoje, e eu ficava tentando ver
semelhanças. Eu via algumas, porque me sentia familiar com tudo. Eu já estive
ali, tanto no meu hoje, como no seu ontem. Estou muito certa disso.
Aí, você apareceu. Sabia
que eu não era dali. Antes, uma espécie de hóspede, e precisava ser bem
recebida. Havia outra mulher comigo, parecia ser minha mãe. Não sei... Éramos
muito jovens, eu, mais do que sou hoje, talvez na casa dos 20. Você também. Foi
um encanto te ver. Muito solícito, muito educado, logo percebeu a minha
preocupação e o meu constrangimento com as roupas, com a vestimenta, e veio me ajudar, oferecer trajes. Qualquer coisa que servisse até irmos a alguma loja providenciar algo melhor.
Vi os rapazes entrando,
à tardinha, e você dizendo que hoje não podia sair, que ia ficar comigo, me dar
atenção. Vocês vestiam roupas pomposas! Pareciam ter saído dos livros de Machado
de Assis. E, a partir daquele momento, suas tardes, seus lazeres, seriam todos
meus, tudo seria muito pra nós. Isso foi tão doce!... de onde eu te conheço,
afinal? Por que estar ali?
E fomos circulando pela
cidade, você a me mostrar construções, ruínas, o surgimento das favelas, a
praia. E, de repente, já era o século XX, lembro-me de comentar com alguém que
eram os anos 40. 1941, na verdade. As roupas já não precisavam ser tão rígidas.
Eu podia usar saias! Ou um jeans! Que alívio, um jeans, nesse calor do Rio!...
Em um desses passeios,
eu já me percebi apaixonada. Eu não sabia nada de você, só sabia que não queria
ir, eu não podia ir, não depois disso. Eu era uma visitante, tinha que contar o
que vi, quando voltasse pro hoje, não sei pra quem, nem sei por que; mas tinha
que falar da realidade social, das mudanças na história, das favelas, dos
negros, e de tudo o mais. O Candeeiro ia gostar de ver isso, pensei. Mas agora
eu não queria mais voltar, eu só queria um pouco mais da sua companhia, dos
nossos passeios, da sua corte. Um pouco mais do Jardim Botânico, de Copacabana,
da Lapa, e do que mais pudesses me mostrar, porque conhecias tudo, e bem se via
que sentia orgulho de me ensinar, de estar comigo. Como pretexto, como
desculpa, só pra não nos afastarmos mais, nunca mais.
Passaram-se meses em
alguns minutos de sonho. E nós muito juntos, repletos de carinho e
cumplicidade, renúncia e amor. Não houve um beijo, não houve sequer um pedido,
nem sexo, nem nada, e ali estávamos, diante de tudo. Vivendo tudo. Você era meu. E eu, só
sua. Na última tarde, que eu não sabia que seria a última, estava a contemplar
o mar, de lado, como se estivesse num passeio alto, a olhar pro longe, vendo a
outra ponta de praia. Mas eu olhava o morro, dali, e dava pra ver um amontoado de
casas se formando desordenadamente, e eu pensando em todo o povo pobre que
vivia ali. Tive pena deles, mas estava feliz de poder voltar e ver como tudo
foi se formando. Ocupações irregulares, espaços da praia invadidos, pessoas
pedindo esmolas.
Aí, você chegou. “Está preparada para Búzios esta tarde?” como
assim, Búzios? Como sabia que precisava conhecer Búzios? Você sabia de tudo. Apenas
me sentia. Isso é que era o mais lindo. Do copo d’água ao tipo de roupa; da vergonha
que senti dos seus amigos, e da sua acolhida a mim e renúncia a eles; dos
lugares e perguntas mais íntimas, você sabia o que eu precisava saber, sem que
eu nem precisasse pensar. Era tanto cuidado, tanto amor, tanta entrega, que eu
não sei se viverei pra sentir isso um dia.
Eu nem sei se nos
encontraremos um dia. Se nos encontramos de fato. De que vida você é, meu Deus?
Onde você está? Você existe ou é apenas uma vontade de alguém assim? Como saber...
O moderno e o antigo entram em confronto em mim, e, por um instante, penso que
você foi só desejo. Meu sonho. Mas não. Eu sei o que vi, o que senti, o que
vivi. Você está em algum lugar, mas eu não o reconheço nessa vida. Tudo bem, em
alguma outra, quem sabe, nos veremos de novo. E que esse novo seja breve, ainda
que seja em mais um sonho, no meu amor, para que eu possa amenizar esse desejo, e
possa, ao menos, compartilhar um pouco do seu sorriso, do seu pensar, do seu
trato, de tudo o que me deu em um tempo tão longínquo, mas tão meu, que, de tão
real, me faz te querer no agora, no sempre, na perenidade e na leveza da
companhia certa e eterna.
Acordo rindo. Que sede!
Foi por isso que eu não vi Búzios, foi por isso que eu voltei, morrendo de
saudade, e pensando na vontade de voltar, de nunca ter saído de perto de você.
Só de pensar em suas mãos me levando pelas ruas, pelos vãos, pelos lugares tão
conhecidos, que eu fingia não conhecer pra te deixar me ensinar um pouco mais,
fico com mais saudade ainda. Durmo de novo, você não vem. Nada. Sonho com o
mar, travessia, eu nadando, só. Outra coisa, outro tempo. Droga. Cadê você...
O meu dia tem agora outro gosto, outra cor. E eu nem sei se consigo desdizer aqui o que esse sonho com você, de fato, me deu. Se aqui há um pouquinho de te guardar, de nos suspender no tempo das coisas vividas, nas minúcias do amor, nos sorrisos da esperança, é pra não te deixar ir. E quando quase passar, te leio um pouco, e te guardo uma vez mais, te salvo em mim. Não te deixo, não vou me deixar esquecer desse tanto de nós no depois, do seu tudo em mim, ainda que te queira imenso no hoje.
Mas, meu amor, não
tenhamos pressa. Não nos nomeamos, mas nos reconhecemos. Saberemos, então. Somos
um do outro, o outro do um. Nos encontraremos, eu preciso disso. Preciso sentir
a plenitude desse amor de novo. Não importa onde acontecerá, não importa o
quando. Só importa que não haverá um se. Apenas haveremos.
Ah!... sinto os meus suspiros
de risos e saudade, e a constatação de que, sim, eu ainda quero o amor.
Gilda.
15/08/2013.
Perfeito teacher
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